Mercado p'la Arte: fevereiro 2024

 



Para o Mercado trouxe a série Rasa de 2022, 2 dípticos de 2018 (que instalei bem próximos um do outro) e LAC #1 (uma pintura de 2015, que na exposição CAL tinha sido apresentada como parte de um trio). Na mesa alguns trabalhos das séries Alfarrabista, Nanquim e Angular.

Abaixo estão as obras ainda disponíveis de cada série:
Série Rasa
Série Angular
Série Alfarrabista: IV, III, II
Série Nanquim

Encomenda: Mudéjar


 

Mudéjar

Acrílico sobre tela, 90x90 cm, 2023

(colecção particular/private collection)

Já não estar - a exposição ALBO, de Rui Aleixo, na Casa Azul, por Inês Joaquim para Umbigo Magazine

 «A morte para mim é a diferença entre estar e já não estar». Esta frase de José Saramago parece traduzir bem o espírito de ALBO, de Rui Aleixo e com curadoria de Jorge Reis, que inaugurou no dia 28 de Setembro na Casa Azul da EMERGE. Além da investigação e experimentação estéticas e conceptuais, outro motivo impulsionou o artista a uma produção quase obsessiva e talvez terapêutica que culminaram nesta exposição com mais de 50 obras - a morte do pai, que se reflete no binómio presença/ausência, invocando memórias de família de forma abstrata (mais ligada a uma vertente espiritual) e integrando o processo de luto e homenagem ao pai, cuja imagem em tempos povoou algumas das molduras presentes na exposição. Esse binómio é explorado neste corpo de trabalho e explicado no texto curatorial e na conversa entre o artista e o curador, anterior à montagem de ALBO. Citando importantes teóricos da psicanálise, como Thomas Fuchs e William James, Jorge Reis traça uma relação de causa-efeito entre a presença de um corpo no espaço e no tempo, por vezes em relação com o outro, a experiência criada a partir dessa intersubjetividade e a memória que daí se forma, potenciando um esbatimento da ausência física posterior - «Nesta dualidade, a ausência do corpo parece provocar uma flexão de tempo nos seus traços sensíveis, o que potencia o sentimento de presença através da intensa evocação de lembranças. (...) É possível, com isto, perceber que paradoxalmente a ausência pode ser uma frequente presença nas nossas vidas e na Arte.» (texto curatorial).

O próprio título ALBO, escolhido pelo curador, e que significa simultaneamente “livro de lembranças” (álbum) e algo alvo, branco, vazio, constitui-se como uma espécie de metáfora etimológica da construção conceptual da exposição. De facto, inicialmente pensada para apresentar apenas uma série, no decorrer da sua criação orgânica e dinâmica, esta exposição/instalação acabou por gerar metáforas em cadeia a partir da imagem de álbum de família com páginas em branco, que, por sua vez, rima também com a casa de família como organismo vivo (um álbum em três dimensões) em que se colocam, retiram e acrescentam fotografias, e dentro dos quais se guardam os diferentes ramos da árvore genealógica (como as diferentes séries que compõem a exposição). Esse imaginário da casa antiga com quadros (molduras e fotografias) de várias épocas, com as paredes queimadas do sol e as marcas dos quadros que lá estão ou estavam, dá lugar às paredes brancas da Casa Azul, galeria-casa que contradiz o distanciamento e crueza por vezes aparentes em galerias construídas exclusivamente para exposições e cujo aspeto de casa dantes habitada potencia as metáforas aludidas e transforma obras abstratas em obras também de site specific. Dentro desta casa, vemos uma genealogia formalmente eclética, mas consonante, de séries e sub-séries compostas por uma diversidade de formas, materiais, dimensões e épocas, que são em vários casos paralelas ou espelhadas. Toda esta cadeia de metáforas e significados confluíram na montagem de ALBO, incluindo a forma dinâmica como se acrescentam quadros a uma casa (de família), conferindo a esta uma carga histórica e orgânica explorada nas experimentações artísticas de Rui Aleixo com recurso ao abstracionismo, em vez de uma utilização óbvia da fotografia de arquivo. Embora os objetos usados (molduras epassepartouts) e as formas exploradas estejam relacionados com a fotografia, nenhuma foi usada - Rui Aleixo não quis trabalhar diretamente sobre a fonte/origem, quis retirar esse conteúdo, referindo-o apenas através de imagens mais distantes, uma citação oculta. Quem vir as imagens, não verá a fotografia que costuma ser enquadrada por uma moldura e um passepartout, mas poderá ter uma reminiscência/memória dessa outra imagem. A ausência torna-se quase presença através da memória e experiência de cada sujeito. A opção por esta linha de criação, além de ser coerente com a obra anterior do artista, reforça o tratamento do binómio presença/ausência e distingue-o formalmente de artistas contemporâneos, referenciados no texto curatorial, como é o caso de Anish Kapoor, que trabalharam este mesmo tema.

Em ALBO, o abstracionismo é assim, em parte, usado como metáfora da não presença física e da não presença imagética para reforçar a ausência sentida, revestindo-se de efeitos psicológicos e espirituais que nos remetem para as origens e o desenvolvimento das correntes abstracionistas na primeira metade do século XX. Ainda que a exploração sistemática de diversas geometrias de passepartouts e molduras, com linhas e manchas - traçando quase um percurso histórico destes objetos, que dantes tinham uma maior variedade de formas, em contraste com as atuais mais minimalistas -, se aproxime da pesquisa preconizada por correntes como o Suprematismo, pertencente ao Abstracionismo Geométrico, que, por sua vez integrava o Construtivismo Russo; ao contrário da procura radical de um «grau zero» da Pintura, através da supremacia dada a formas geométricas e a cores puras, que traduzia uma defesa da autonomia da Arte e da Pintura em relação às outras artes e à vida/ao real por parte dos suprematistas e construtivistas, Rui Aleixo não abdica do lado lúdico e lírico da criação, imbuído na experimentação intrínseca à produção das obras - começá-las sem saber totalmente como terminarão, sendo guiado pelo próprio processo, pela intuição, mais do que pelo lado racional, mas num equilíbrio com este. Esta característica e as reminiscências do real e da memória, presentes nas obras de ALBO, parecem aproximar-se mais, tanto formal como conceptualmente, do Abstracionismo Lírico, movimento criado por Kandinsky, onde se verifica um maior equilíbrio entre a exploração dos meios da Pintura e o que das outras artes e outras áreas poderia ser adaptado a essa linguagem própria, mas também, e especialmente, uma ponte entre o exterior e o interior, entre as formas abstratas e os valores espirituais, que terão, necessariamente, de partir da Natureza, sobretudo da natureza humana, da sua necessidade interior, ainda que a expressão que melhor fará esse elo de ligação seja a abstrata.

Conceptualmente, poder-se-á ainda estabelecer um paralelismo entre o trabalho de Aleixo e certas premissas do Surrealismo, pela invocação da memória, a presença e ausência do corpo no subconsciente, e pela riqueza interior refletida nas formas abstratas - a relação entre o que é pintado na tela, algo exterior, e o interior do ser humano. Contudo, no caso do Surrealismo, existe um movimento do interior para o exterior, que implica evidentemente um forte carácter subjetivo, e cujo foco não está no uso da figuração ou da abstração. Já na teoria de Kandinsky, o «interior» corresponde ao espiritual, com implicações filosóficas e não só, dando-se uma passagem da necessidade interior do artista para o exterior da sua materialização na tela, e igualmente uma ponte do exterior para o interior, que se dá no momento da receção da obra pictórica pelo espetador. Assim, esta teoria tende para o alcance de uma universalidade, nascida das várias subjetividades do artista e dos recetores, remetendo-nos para a intersubjetividade, defendida pela teoria estética kantiana e mencionada no início deste artigo, e que é potenciada pelo percurso no sentido da abstração, em que formas e cores desencadeiam efeitos psicológicos e espirituais por si só, passando pela linguagem do olho que comunica ao espírito ressonância e vibrações do que aquele observa.

À semelhança da investigação e experimentação lideradas por Kandinsky, Aleixo trabalhou em várias frentes na procura pela essencialidade da arte e a sua progressiva separação do figurativo, utilizando diferentes materiais para explorar o mediumda Pintura, tais como o vidro e os próprios passepartouts e molduras (de várias épocas e formatos), usados como suporte de criação e deixando de ser um simples adorno. Num espírito de colecionador e explorador, transforma, modifica e substitui estes elementos, assim transmitindo a ideia do marco, da margem, do esconder e revelar, do ocultar, da memória - do que lá esteve antes. As formas geométricas daí decorrentes - entre as quais, círculos, quadrados, retângulos e a recorrente forma oval - originam variações com rimas entre obras da exposição, mas também com obras de séries anteriores do artista, sendo nalguns casos usadas como máscara, tanto como ausência como presença, e gerando um equilíbrio entre a geometria e um lado orgânico, sendo exemplo disso a sub-série que mais se destaca na exposição e tem sala própria, Rameau, cujo conceito surge da estampa de uma rosa e assenta em mostrar a natureza sem que esteja lá efetivamente a natureza - as folhagens foram usadas como máscaras, mas depois retiradas, reforçando novamente a ideia de ausência e remetendo para as folhas e flores secas guardadas nos álbuns. Nesta diversidade de propostas, vê-se ainda a sobreposiçao de imagens já existentes em pequenas molduras ovais com novas imagens criadas pelo artista, deixando visível apenas parte daquelas, e, finalmente, com maior impacto no espaço da casa, três mangas plásticas acima da escala humana com desenhos geométricos, a fazer lembrar as folhas quase transparentes e protetoras dos álbuns, neste grande álbum 3D.

 

A poesia visual de ALBO, de Rui Aleixo, está patente até 28 de Outubro, na Casa Azul da EMERGE.


Inês Joaquim

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Albo > imagens da exposição

 







































fotografias de Sérgio Roxo